A imprensa e a origem do coronavírus

Mídia errou ao promover falso consenso científico contra possível escape laboratorial

O coronavírus causador da Covid-19 veio de um animal ou de um laboratório? Esse foi um dos debates científicos mais acalorados de 2021. Pesquisadores ainda procuram uma resposta para essa questão, mas, durante um bom tempo, a imprensa tratou-a como encerrada, promovendo um consenso que não existia.

Até meados do ano, muitos jornais levavam a sério apenas uma explicação para a origem do vírus: ele teria sido transmitido por um animal. Outras hipóteses eram chamadas de teorias da conspiração ou “história fantasiosa”, como escreveu a agência de checagem Lupa. Um texto do Globo afirmou que “o vírus não foi criado em laboratório” e que a tese do escape laboratorial interessa “a quem não quer controle sobre o desmatamento, sobre o tráfico de animais, sobre a caça” (?).

Depois, o discurso mudou. A Folha, por exemplo, cobriu o assunto com sobriedade em reportagens, colunas e editorial. O Fantástico, da TV Globo, ouviu vários pesquisadores que não descartam a hipótese do escape laboratorial. Em outros países – principalmente nos Estados Unidos – a reviravolta foi ainda maior.

Por que a imprensa errou tanto antes?

Para começar, faltou o velho e bom ceticismo. Muitas reportagens usaram como referência o estudo “The proximal origin of SARS-CoV-2”, de Kristian G. Andersen et al., publicado na Nature Medicine em março do ano passado,1 que dizia mostrar “claramente que o SARS-CoV-2 não é uma construção de laboratório ou um vírus propositalmente manipulado”.

Veículos limitaram-se a propagandear o artigo, e alguns foram até mais longe. “Estudo desmente teoria conspiratória”, disse o Estadão em um texto de checagem de fatos. “Os boatos de que o vírus foi manipulado pela China não passam de uma mentira. E a ciência prova”, publicou a Superinteressante.

Uma leitura atenta evitaria essas conclusões equivocadas. Diz o estudo (grifos meus):

In theory, it is possible that SARS-CoV-2 acquired RBD mutations […] during adaptation to passage in cell culture, as has been observed in studies of SARS-CoV.

[…]

Although the evidence shows that SARS-CoV-2 is not a purposefully manipulated virus, it is currently impossible to prove or disprove the other theories of its origin described here. However, since we observed all notable SARS-CoV-2 features, including the optimized RBD and polybasic cleavage site, in related coronaviruses in nature, we do not believe that any type of laboratory-based scenario is plausible.

More scientific data could swing the balance of evidence to favor one hypothesis over another.

Apesar da forte crença dos autores na origem natural do vírus, eles não descartavam a possibilidade de ele ter saído de um laboratório. (Essa posição foi posteriormente confirmada por Andersen.)

Dois meses depois, na Immunity, Rachel L. Graham e Ralph S. Baric (este, um dos mais conhecidos pesquisadores de coronavírus) elogiaram o trabalho de Andersen et al., mas advertiram: “Transparência e investigação científica aberta serão essenciais para resolver esta discussão, observando que atualmente a evidência forense de escape natural é deficiente, e outras explicações permanecem razoáveis”.

Pelo visto, os jornalistas discordavam.

Outro problema foi a ânsia de mostrar que Donald Trump e seus seguidores estavam errados, como neste texto creditado à Reuters e publicado na Folha:

O presidente Donald Trump se referiu ao patógeno por diversas vezes como “vírus chinês” e o governo americano ajudou a divulgar uma teoria conspiratória —já desmentida por estudos científicos independentes— segundo a qual o coronavírus teria “escapado” de um laboratório de biossegurança em Wuhan.

Há diversas hipóteses sobre a origem laboratorial, e algumas de fato soam conspiratórias – por exemplo, a ideia de que o vírus seria uma arma biológica. Outras, como um vazamento acidental, são mais razoáveis – talvez menos prováveis que as hipóteses de origem animal, mas longe de serem impossíveis. Toda essa nuance se perdeu na mídia, contaminada pelas declarações de Trump.

Até por isso, nos EUA a coisa foi bem pior. Veículos como o Washington Post e o site Vox reconheceram erros e reescreveram textos. O Facebook e o Instagram censuraram publicações de usuários. A agência PolitiFact anulou um de seus artigos de checagem de fatos.

Nesse ambiente, cientistas que não descartavam a hipótese da origem laboratorial sentiram-se pressionados a evitar o assunto. Quem ousava dizer que o escape laboratorial era plausível colocava a sua imagem e a sua carreira em risco.

Ainda hoje, muitos preferem não se manifestar sobre esse e outros assuntos polêmicos, principalmente quando sua posição difere da adotada pela imprensa. Mesmo opiniões cuidadosas e nuançadas tendem a ser evitadas, pois são facilmente distorcidas ou mal compreendidas pela mídia e pelo público.

Isso complica ainda mais o trabalho dos jornais, que muitas vezes se guiam por manifestações públicas – principalmente em redes sociais – para descobrir o “consenso” entre especialistas. O resultado pode ser desastroso: o anúncio de um falso consenso, que existe apenas entre personalidades conhecidas por jornalistas. Algumas chegam a ganhar status de autoridade na mídia – suas opiniões viram a “voz da ciência”, e os que delas discordam são estigmatizados.

Disse Jonathan Chait na New York:

But Twitter is the milieu in which the opinions of elite reporters take shape. And very often it is a petri dish of tribalism and confirmation bias. This dynamic is why conservative media is virtually devoid of serious journalism and overrun with propaganda. The idiotic conformity of the right’s pseudo-journalistic apparatus should inspire horror, not complacency or (worse still) envy. If progressive and mainstream media wish to avoid following this path, the lab-leak fiasco should be a case study.

Para evitar essa armadilha, os jornalistas devem fazer mais do básico: apurar bem. Isso inclui buscar também especialistas fora das redes sociais.2 O Twitter não representa a diversidade da comunidade científica. Redes sociais e academia funcionam de maneira distinta, com diferentes incentivos (até por isso, muitas pessoas com bastante audiência nas primeiras não têm muita relevância na segunda).3

A imprensa passou a aceitar a hipótese do escape laboratorial só depois da saída de Trump da presidência, da publicação de textos de autores e cientistas de renome e de uma declaração do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde.4 Não precisaria ter esperado tudo isso se tivesse trabalhado com esmero desde o começo. A velha desculpa de que “a evidência mudou” não cabe nesse caso – nunca houve evidência forte o suficiente para decretar a origem natural como comprovada.

Exageros a favor do outro lado também são possíveis, até porque a hipótese da origem laboratorial contém detalhes muito palatáveis à narrativa jornalística – como mostram, por exemplo, as fascinantes reportagens do Wall Street Journal, da Newsweek e da Vanity Fair sobre o tema.

É difícil encontrar o equilíbrio.

Não se trata de cobrar tratamento igual a diferentes hipóteses – o que poderia resultar em uma falsa equivalência –, mas tratamento mais preciso, que represente bem o que a ciência tem a dizer. Não raro, isso inclui diferentes hipóteses com diferentes probabilidades – e, nesses casos, a imprensa deve mostrar que a hipótese mais provável não é a única possível ou correta, e que as menos prováveis não são necessariamente impossíveis ou falsas.

É necessário aprender a lidar com a incerteza. Angie Drobnic Holan, editora-chefe da PolitiFact, escreveu:

We [journalists, doctors, scientists, and fact-checkers] all face the temptation to write and speak with authority, even when we know in our hearts that our knowledge is human and therefore limited. Using words that say this is the best we know now, and that circumstances may change, is one of the most powerful ways of conveying this.

Journalists and fact-checkers have professional obligations to be as honest with the public as possible, but we do the public a disservice when we give them the feeling that we have all the answers.

It is not in our nature to appreciate uncertainty. It makes most of us queasy and uncomfortable. But it’s clearly part of the learning process, and it’s something we really can’t avoid. Of all the lessons we’ve learned from COVID-19, getting comfortable with the uncertainty is one of the healthiest responses.

Além de desinformar, coberturas desastradas como a aqui discutida aumentam a desconfiança do público e fazem a festa dos reais propagadores de teorias conspiratórias. “Quem garante que, agora, o que a imprensa chama de mentira é mesmo mentira?”

Infelizmente, talvez aos leitores reste mesmo desconfiar, especialmente de reportagens que transmitem uma ideia de certeza – com alusões a supostos consensos e a estudos que “provam” algo – ou que incluem citações em uníssono dos mesmos especialistas de sempre, populares nas redes sociais.

Cabe dizer ainda que uma eventual confirmação da origem natural do vírus não atenuaria os erros aqui descritos. O mesmo vale, por exemplo, para a reportagem da Folha sobre os dados de vacinas vencidas – a confirmação de que algumas delas realmente estavam vencidas não repara o erro do jornal.

Um trabalho cuidadoso beneficiaria a todos. A imprensa não continuaria a perder tanta credibilidade. A comunidade científica teria um ambiente mais saudável para debates. E a sociedade seria mais bem servida por ambas.


  1.   O estudo foi publicado na seção “Correspondence” da revista.

  2.   Em “A imprensa e a hidroxicloroquina“, citei Nicholas White, grande pesquisador e conhecedor da droga. Muitos jornalistas e “divulgadores científicos” o desconheciam. Ele não tem perfil no Twitter.

  3.   Além de Jonathan Chait, comentaristas como Zeynep Tufekci e Matthew Yglesias abordaram bem a relação entre a imprensa e o Twitter.

  4.   Destaque para os textos de Nicholas Wade (“Origin of Covid — Following the Clues“) e Donald G. McNeil Jr. (“How I Learned to Stop Worrying And Love the Lab-Leak Theory“) em maio no Medium e o de Nicholson Baker (“The Lab-Leak Hypothesis“) em janeiro na New York. Eli Vieira traduziu o artigo de Wade na Gazeta do Povo.


Referências

Veículos jornalísticos

  1. Agence France-Presse. “Em resposta aos EUA, laboratório de Wuhan nega ser fonte de novo coronavírus”. Folha de S.Paulo, 19 de abril de 2020.

  2. Agencia EFE. “OMS desmente teoria da conspiração de que o coronavírus saiu de laboratório”. O Estado de S. Paulo, 21 de abril de 2020.

  3. Para um terço dos americanos, coronavírus foi criado em laboratório, diz pesquisa”. O Globo, 14 de abril de 2020.

  4. Maurício Moraes. “Na web, teorias da conspiração apontam China e EUA como criadores da Covid-19”. Agência Lupa, 4 de agosto de 2020.

  5. Ana Lucia Azevedo. “Natural ou vazado de um laboratório: entenda a polêmica científica sobre a origem da Covid-19”. O Globo, 29 de maio de 2021.

  6. Ana Bottallo, Everton Lopes Batista. “Lacuna sobre origem do coronavírus preocupa mas pode demorar para ser preenchida”. Folha de S.Paulo, 12 de junho de 2021.

  7. Reinaldo José Lopes. “Origem do coronavírus em laboratório não pode ser descartada, mas fonte natural é mais provável”. Folha de S.Paulo, 29 de maio de 2021.

  8. A origem do vírus”. Editorial. Folha de S.Paulo, 31 de maio de 2021.

  9. Álvaro Pereira Júnior. “Cientistas investigam hipóteses sobre a origem do coronavírus; entenda”. Fantástico, 6 de junho de 2021.

  10. Álvaro Pereira Júnior. “Polêmica sobre origem da Covid esquenta após imagens de morcegos no que seria laboratório de Wuhan”. Fantástico, 20 de junho de 2021.

  11. Ana Carolina Amaral. “Coronavírus tem origem natural e não foi feito em laboratório, mostra estudo”. Folha de S.Paulo, 18 de março de 2020.

  12. Alessandra Monnerat. “Coronavírus: estudo desmente teoria conspiratória sobre criação em laboratório da China”. O Estado de S. Paulo, 19 de março de 2020.

  13. Carolina Fioratti. “Sim, o coronavírus veio da natureza – e não de um laboratório”. Superinteressante, 19 de março de 2020.

  14. James Gorman, Carl Zimmer. “Scientist Opens Up About His Early Email to Fauci on Virus Origins”. The New York Times, 14 de junho de 2021.

  15. Marcelo Leite. “Ninguém provou que Trump e Bolsonaro erraram origem do Sars-CoV-2”. Folha de S.Paulo, 8 de maio de 2021.

  16. Marcelo Coelho. “Biden e a Madame Morcego reavivam o que seriam fake news da origem da Covid”. Folha de S.Paulo, 1º de junho de 2021.

  17. Reuters. “China prende jornalista australiana sem divulgar acusação formal”. Folha de S.Paulo, 1º de setembro de 2020.

  18. Paulina Firozi. “Tom Cotton keeps repeating a coronavirus fringe theory that scientists have disputed”. The Washington Post, 17 de fevereiro de 2020.

  19. Eliza Barclay. “The conspiracy theories about the origins of the coronavirus, debunked”. Vox, 4 de março de 2020.

  20. Daniel Funke. “Tucker Carlson guest airs debunked conspiracy theory that COVID-19 was created in a lab”. PolitiFact, 16 de setembro de 2020.

  21. Carl Zimmer, James Gorman, Benjamin Mueller. “Scientists Don’t Want to Ignore the ‘Lab Leak’ Theory, Despite No New Evidence”. The New York Times, 27 de maio de 2021.

  22. Jonathan Chait. “How Twitter Cultivated the Media’s Lab-Leak Fiasco”. New York, 26 de maio de 2021.

  23. Jeremy Page, Betsy McKay, Drew Hinshaw. “The Wuhan Lab Leak Question: A Disused Chinese Mine Takes Center Stage”. The Wall Street Journal, 24 de maio de 2021.

  24. Rowan Jacobsen. “Exclusive: How Amateur Sleuths Broke the Wuhan Lab Story and Embarrassed the Media”. Newsweek, 2 de junho de 2021.

  25. Katherine Eban. “The Lab-Leak Theory: Inside the Fight to Uncover COVID-19’s Origins”. Vanity Fair, 3 de junho de 2021.

  26. Angie Drobnic Holan. “Can scientific uncertainties about COVID-19 be fact-checked?”. Poynter, 28 de maio de 2021.

  27. Estêvão Gamba, Sabine Righetti. “Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles”. Folha de S.Paulo, 2 de julho de 2021.

  28. Nicholson Baker. “The Lab-Leak Hypothesis”. New York, 4 de janeiro de 2021.

Periódicos acadêmicos

  1. Michael Worobey. “Dissecting the early COVID-19 cases in Wuhan”. Science, 18 de novembro de 2021.

  2. Kristian G. Andersen et al. “The proximal origin of SARS-CoV-2”. Nature Medicine, 17 de março de 2020.

  3. Rachel L. Graham, Ralph S. Baric. “SARS-CoV-2: Combating Coronavirus Emergence”. Immunity, 8 de maio de 2020.

  4. Edward C. Holmes et al. “The origins of SARS-CoV-2: A critical review”. Cell, 18 de agosto de 2021.

  5. Jesse D. Bloom et al. “Investigate the origins of COVID-19”. Science, 14 de maio de 2021.

Outros

  1. A imprensa e a hidroxicloroquina”. Nota Bene, 29 de dezembro de 2020.

  2. Guy Rosen. “An Update on Our Work to Keep People Informed and Limit Misinformation About COVID-19”. Facebook, 16 de abril de 2020.

  3. WHO calls for further studies, data on origin of SARS-CoV-2 virus, reiterates that all hypotheses remain open”. World Health Organization, 30 de março de 2021.

  4. A miséria da crítica jornalística”. Nota Bene, 17 de fevereiro de 2021.

  5. Zeynep Tufekci. “How the Twitter/Media Feedback Loop Can Work to Undermine Our Understanding”. Insight, 27 de maio de 2021.

  6. Matthew Yglesias. “The media’s lab leak fiasco”. Slow Boring, 26 de maio de 2021.

  7. Nicholas Wade. “Origin of Covid — Following the Clues”. Medium, 2 de maio de 2021.

  8. Donald G. McNeil Jr. “How I Learned to Stop Worrying And Love the Lab-Leak Theory”. Medium, 17 de maio de 2021.