Artigo publicado na ‘Folha de S.Paulo’ contém falhas primárias
No mês passado, o site da Folha de S.Paulo publicou o artigo “Ciência séria não escolhe evidência”, que, entre outras coisas, tenta explicar como se faz ciência. Seus autores, Guilherme Lichand e Márcio Sommer Bittencourt, cometeram pelo menos três erros primários – e admitiram apenas um:
- Disseram que um artigo da Scientific Reports foi publicado na “reconhecida revista Nature” (erro não admitido)
- Usaram o mesmo artigo, que incluiu estudos com pacientes hospitalizados, como argumento contra o tratamento precoce (erro não admitido)
- Disseram que o famoso artigo fraudulento da Lancet “sugeria que cloroquina tinha efeitos positivos” (erro admitido e corrigido)
Aos detalhes.
O texto na Folha cita uma meta-análise “publicada na reconhecida revista Nature”. O artigo, na verdade, saiu na Scientific Reports, um periódico com fator de impacto bem menor que o da Nature e um grande histórico de controvérsias.
Comuniquei o erro ao jornal, que entrou em contato com os autores. A resposta: não foi erro, e o pedido de correção seria “preciosismo” de minha parte, pois a Scientific Reports “é uma publicação da Nature, sob o mesmo guarda-chuva editorial”.
Qualquer cientista sério sabe que existe uma grande diferença entre “publicação da Nature” e “reconhecida revista Nature”. A Nature tem dezenas de periódicos. Pela curiosa interpretação de Lichand e Bittencourt, quem publica um artigo na Acta Pharmacologica Sinica ou na Scientific American pode orgulhosamente incluir a “reconhecida revista Nature” em seu currículo. E que ninguém tente corrigi-lo! Seria “preciosismo”.
Ora, nem mesmo os pesquisadores responsáveis pela citada meta-análise concordariam com a bondosa forçada de barra no texto da Folha. Imaginem se saíssem por aí dizendo que emplacaram um trabalho na “reconhecida revista Nature”. Seriam ridicularizados.
O segundo erro foi usar a meta-análise da Scientific Reports, que incluiu estudos em pacientes hospitalizados, como argumento contra o tratamento precoce. São situações distintas. “É o beabá do assunto”, disse Flavio Abdenur em uma surreal conversa com Lichand no Twitter.
Em “A imprensa e a hidroxicloroquina”, escrevi:
Frequentemente vemos resultados de ensaios com pacientes hospitalizados usados como argumentos contra um possível benefício da droga no tratamento precoce. É uma retórica enganosa, e a imprensa, ao misturar tudo e não fazer a devida distinção dos casos, confunde o debate. Muitas vezes o tratamento precoce é mencionado apenas en passant, como se a discriminação entre ele e o tratamento de pacientes hospitalizados fosse pouco importante.
Mas ela é importante. Primeiro, é comum uma droga apresentar diferentes efeitos dependendo da fase do tratamento. Segundo, a parte mais interessante do debate, em que residem as maiores incertezas, é justamente a que envolve a prevenção e o tratamento precoce.
Só para ser claro, não quero defender aqui a atuação do Ministério da Saúde (que apoia o tratamento precoce), apenas apontar a falha na argumentação do texto publicado na Folha.
Para finalizar, provavelmente o erro mais gritante: os autores disseram que o famoso estudo fraudulento publicado na Lancet, com resultados negativos ao uso de cloroquina e hidroxicloroquina, “sugeria que cloroquina tinha efeitos positivos”.
Daniel Victor Tausk fez um ótimo comentário a respeito (cópia no Substack):
Eles estão tão por fora do assunto que sabem menos que um leigo que acompanha razoavelmente bem as notícias. É como se dois historiadores fossem escrever um artigo no jornal num tom “vão estudar história seus ignorantes” e afirmassem no artigo que Getúlio Vargas derrubou Dom Pedro I, dando início à Guerra dos Cem Anos. Passar só um pouco de vergonha é para os fracos.
Comuniquei o erro à Folha, que corrigiu o texto.
“[A]ceitamos a evidência e corrigimos o que exige correção”, disse Lichand. “Diferente de quem tem certezas, reconhecemos e corrigimos erros”, disse Bittencourt.
Infelizmente, é difícil levar essas frases a sério. Antes, ao serem questionados sobre o erro, Lichand desconversou e disse que “a redação saiu dúbia”, e Bittencourt simplesmente ficou quieto. Eles só admitiram o erro porque foram forçados a isso, após o contato da Folha. E, se de fato tivessem compromisso com a verdade, reconheceriam também o erro da “reconhecida revista Nature”. Mas não o fizeram.
Os erros são lamentáveis, e a resistência em admiti-los e corrigi-los é ainda pior. Uma postura um tanto anticientífica de pesquisadores que se propõem a explicar a ciência. (Não estão sozinhos nisso, claro.)