Ainda no eco da série especial Tire-me deste Rochedo, procuramos resumir aqui a triste história brasileira na Estação Espacial Internacional (ISS), cuja construção chegou a envolver um consórcio de 16 países: Estados Unidos, Rússia, Japão, Canadá, Brasil, Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Itália, Holanda, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça.
Os fatos ajudam a entender por que a faixa que aparece sob fotos oficiais dos tripulantes das expedições à ISS mudou em 2007 desta:
…para esta:
Em 1º de março de 1996, o Brasil e os Estados Unidos firmaram o “Acordo-quadro entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre a Cooperação nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior”, que, nas palavras de Darly Henriques da Silva em artigo no periódico Space Policy, “criou as condições legais para o Brasil ingressar em grandes programas espaciais internacionais, em particular a ISS”.
A Nasa convidou o país a participar da ISS em dezembro daquele ano. Nos meses seguintes, ocorreram negociações entre o Brasil e os EUA que levaram ao “Ajuste Complementar entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para o Projeto, Desenvolvimento, Operação e Uso de Equipamento de Vôo e Cargas Úteis para o Programa da Estação Espacial Internacional”, firmado em 14 de outubro de 1997 e que basicamente estabelecia os papéis da Nasa e da Agência Espacial Brasileira (AEB) no projeto.
No acordo, a AEB comprometia-se a fornecer seis componentes para a estação:
- Instalação para Experimentos Tecnológicos (TEF)
- Janela de Observação para Pesquisa – Bloco 2 (WORF-2)
- Palete Expresso para Experimentos na Estação Espacial (EXPRESS)
- Container Despressurizado para Logística (ULC)
- Adaptador de Interface para Manuseio de Carga (CHIA)
- Sistema de Anexação ZI-ULC (ZI-ULC-AS)
As descrições de cada um estão no texto original do documento. O esquema abaixo mostra a localização prevista para o Express Pallet e outros elementos da ISS:




O investimento planejado era de US$ 120 milhões. Em troca, o Nasa ofereceria à AEB acesso aos recursos e instalações da estação, transporte de experimentos com ônibus espacial e uma vaga na tripulação da ISS.
Houve avanços em 1998. Marcos Cesar Pontes, então com 35 anos, foi o escolhido para ser o primeiro brasileiro a voar para o espaço e iniciou seu treinamento nos EUA. A Embraer foi selecionada como contratante principal do programa brasileiro na ISS, em um negócio que envolveria 15 empresas nacionais, e a Boeing foi contratada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para assessorar a construção e definir as especificações técnicas do projeto. Em novembro, foi lançado à órbita o primeiro segmento da ISS, o Zarya.
Mas não demorou para surgirem problemas: o Brasil deixou de pagar cerca de US$ 15 milhões à Boeing, vencidos em dezembro de 1998; o orçamento de 1999 do Ministério da Ciência e Tecnologia não incluiu a verba necessária para os compromissos do país no projeto da ISS; e ainda faltava destinar cerca US$ 20 milhões à Embraer. A participação brasileira na ISS foi colocada em xeque pela primeira vez, iniciando um debate sobre a sua importância e a sua validade.
Em maio de 1999, o governo brasileiro fez reuniões com representantes da Nasa e da Embaixada dos EUA e decidiu continuar dentro do projeto da ISS, mas a demora na liberação de verbas, entre outros problemas, manteve dirigentes da Nasa céticos quanto à capacidade do Brasil de cumprir os seus compromissos. Mesmo assim, a AEB ainda acreditava ser possível terminar as partes mais importantes dentro dos prazos estipulados, atrasando a produção das peças menos essenciais.
Desconfiada, a agência espacial norte-americana chegou a publicar em setembro uma solicitação de manifestação de “fontes potenciais” interessadas em fornecer o Express Pallet, item sob responsabilidade da AEB. No mês seguinte, o presidente Fernando Henrique Cardoso finalmente determinou a liberação da verba para a participação do país na ISS, o que, segundo o ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardenberg, asseguraria o cumprimento dos compromissos assumidos.
O ano 2000 teve algumas notícias animadoras, como a previsão de aumento de investimento público no setor espacial – o que incluía o programa da ISS –, a seleção de um novo astronauta, a ser realizada no ano seguinte, e uma negociação com a Boeing – a empresa ofereceria o design preliminar do Express Pallet e o suporte para a montagem dos outros equipamentos.
Em dezembro, Marcos Pontes completou o curso da Nasa e tornou-se o primeiro astronauta brasileiro, mas a data de sua viagem era uma incógnita. Inicialmente, ele tinha esperanças de que ocorresse em 2002 ou 2003, mas isso foi descartado devido a uma série de empecilhos.




Em 2001, os EUA fizeram cortes no orçamento destinado à ISS, diminuindo o número de tripulantes fixos na estação, e a Nasa reduziu o número de decolagens de ônibus espaciais. Com isso, a espera dos astronautas que estavam na fila para ir à ISS ficou mais longa.
No mesmo ano, a Embraer alertou sobre as dificuldades de construir os seis componentes previstos no acordo entre o Brasil e os EUA e soltou um relatório técnico alegando que a verba destinada pelo governo à empresa era suficiente para a montagem de apenas um dos equipamentos.
A partir de então, o negócio passou a desmoronar lentamente.
Preocupado (com razão), o administrador da Nasa Sean O’Keefe enviou em junho de 2002 uma carta a Ronaldo Sardenberg pedindo que o Brasil confirmasse o seu compromisso em completar o Express Pallet no tempo combinado – ou seja, até abril de 2006, data em que o componente seria instalado na estação. Cabe dizer que o projeto original previa a entrega do equipamento em 2001. O ministro respondeu que não poderia garantir a fabricação do Express Pallet e pediu a realização de uma reunião com a agência norte-americana para discutir a participação do país na ISS. A essa altura, a Nasa já ameaçava excluir o Brasil do projeto.
Nos encontros – realizados em 30 de setembro e 1º de outubro, em Houston –, o Brasil exigiu a manutenção do plano original de gastos (US$ 120 milhões) e a fabricação das peças por indústrias do país; os EUA apenas pediram que o cronograma da ISS não fosse afetado pela participação brasileira.
O resultado foi a alteração das peças a serem fornecidas pelo Brasil. A mais importante, o Express Pallet, que sozinho custava mais do que os US$ 120 milhões do plano de gastos, não seria mais fabricada pelo país. O novo acordo previa a construção apenas de placas adaptadoras (FSEs) e do Container Despressurizado para Logística (ULC) – o único componente dos seis da lista original.
Cálculos realizados pela AEB e pela coordenação técnica do programa em 2003 estimaram o custo da construção das peças em US$ 80 milhões. Na mesma época, o Ministério da Ciência e Tecnologia cogitou cortar o programa, mas desistiu da ideia após analisar os impactos negativos que isso teria na imagem do país.
O governo, porém, apresentou um plano plurianual que previa para o projeto uma verba suficiente para a construção apenas dos FSEs. A AEB expôs essa dificuldade à Nasa, e um novo acordo foi fechado no final do ano: o Brasil fabricaria 43 FSEs, ao custo de aproximadamente US$ 8 milhões, e a construção de outros itens dependeria da disponibilidade de recursos. Os direitos do país previstos no acordo original, como a utilização da ISS e do ônibus espacial e a viagem do astronauta brasileiro, ficavam cada vez mais comprometidos pela diminuição da participação brasileira no programa.
Os tropeços brasileiros e a suspensão das missões com ônibus espacial após o acidente com o Columbia, que resultou na morte de seus sete tripulantes em 1º de fevereiro de 2003, deixavam o voo de Marcos Pontes cada vez mais incerto. Com isso, o Brasil começou a conversar com a Rússia em 2004 sobre a possibilidade de o astronauta ir à ISS a bordo de uma espaçonave russa.
Na Nasa, Pontes já não sabia mais o que dizer para justificar os atrasos do Brasil – chegando até a evitar cruzar com algumas pessoas nos corredores dos prédios – e esforçava-se para manter o país no programa. A partir de uma ideia dele, a AEB e o Senai-SP fecharam acordo em abril de 2005 para a fabricação dos FSEs. Protótipos das placas seriam feitos pelo Senai, que desenvolveria metodologia de fabricação e controle de qualidade, e repassados à indústria para produção. O Senai faria o serviço de graça e em troca ganharia “experiência”.




A AEB e a Roscosmos (agência espacial russa) assinaram em outubro um acordo para a Missão Centenário – nome em alusão aos 100 anos do voo de Santos Dumont com o avião 14-bis –, que levaria Pontes à ISS em março de 2006, a bordo de uma espaçonave Soyuz. O governo não revelou os valores, mas estima-se que o Brasil tenha pagado cerca de US$ 10 milhões para os russos. O astronauta seguiu então para o Centro de Treinamento de Cosmonautas Yuri Gagarin.
Mudanças no cronograma da ISS determinaram uma data-limite para a entrega das peças brasileiras – antes, não havia um prazo estipulado. No início de 2006, após cogitar dispensar o Brasil do programa da estação e repassar a fabricação dos equipamentos para a indústria norte-americana, a Nasa decidiu diminuir a participação brasileira – o país montaria apenas 15 dos 43 FPEs inicialmente previstos.
Em seguida, a Missão Centenário foi realizada – durou dez dias entre março e abril de 2006 –, e o Senai iniciou a fabricação do protótipo do equipamento. A Nasa enviou em dezembro uma carta à AEB informando que as placas não seriam mais necessárias, o que deu início a novas negociações, que duraram até 2007. No final, o Brasil não contribuiu com peça alguma para o programa.
“Brasil está fora do projeto da Estação Espacial (ISS)”, publicou em 28 de maio de 2007 O Estado de S. Paulo. Em entrevista ao jornal, John Logsdon, membro do Comitê de Conselho da Nasa, declarou: “Apesar de ser improvável que a Nasa vá tomar qualquer atitude formal para cancelar seu contrato com a Agência Espacial Brasileira, o Brasil não aparece mais em seus documentos como um contribuinte da ISS. Na prática, portanto, o Brasil não faz mais parte da parceria da estação”.
Ao comentar o voo de Marcos Pontes, Logsdon revelou que “foi uma certa surpresa para os Estados Unidos saber que o Brasil tinha recursos para pagar à Rússia por um voo, mas não para financiar as contribuições que prometera para a ISS”. Ele ainda disse que a incapacidade brasileira em honrar seus compromissos deixou “um gosto ruim” na boca da Nasa.
A Estação Espacial Internacional completou 10 anos em novembro de 2008. A Nasa soltou um press release sobre o aniversário. Nenhuma menção ao Brasil.




Referências
Links no texto
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“Acordo-quadro entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre a Cooperação nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior”. 1º de março de 1996.
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